segunda-feira, 16 de julho de 2012



Eu Etiqueta.

Em minha calça está grudado um nome 
Que não é meu de batismo ou de cartório
 
Um nome... estranho.
 
Meu blusão traz lembrete de bebida
 
Que jamais pus na boca, nessa vida,
 
Em minha camiseta, a marca de cigarro
 
Que não fumo, até hoje não fumei.
 
Minhas meias falam de produtos
 
Que nunca experimentei
 
Mas são comunicados a meus pés.
 
Meu tênis é proclama colorido
 
De alguma coisa não provada
 
Por este provador de longa idade.
 
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
 
Minha gravata e cinto e escova e pente,
 
Meu copo, minha xícara,
 
Minha toalha de banho e sabonete,
 
Meu isso, meu aquilo.
 
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
 
São mensagens,
 
Letras falantes,
 
Gritos visuais,
 
Ordens de uso, abuso, reincidências.
 
Costume, hábito, permência,
 
Indispensabilidade,
 
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
 
Escravo da matéria anunciada.
 
Estou, estou na moda.
 
É duro andar na moda, ainda que a moda
 
Seja negar minha identidade,
 
Trocá-la por mil, açambarcando
 
Todas as marcas registradas,
 
Todos os logotipos do mercado.
 
Com que inocência demito-me de ser
 
Eu que antes era e me sabia
 
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
 
Ser pensante sentinte e solitário
 
Com outros seres diversos e conscientes
 
De sua humana, invencível condição.
 
Agora sou anúncio
 
Ora vulgar ora bizarro.
 
Em língua nacional ou em qualquer língua
 
(Qualquer principalmente.)
 
E nisto me comparo, tiro glória
 
De minha anulação.
 
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
 
Eu é que mimosamente pago
 
Para anunciar, para vender
 
Em bares festas praias pérgulas piscinas,
 
E bem à vista exibo esta etiqueta
 
Global no corpo que desiste
 
De ser veste e sandália de uma essência
 
Tão viva, independente,
 
Que moda ou suborno algum a compromete.
 
Onde terei jogado fora
 
Meu gosto e capacidade de escolher,
 
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
 
Tão minhas que no rosto se espelhavam
 
E cada gesto, cada olhar
 
Cada vinco da roupa
 
Sou gravado de forma universal,
 
Saio da estamparia, não de casa,
 
Da vitrine me tiram, recolocam,
 
Objeto pulsante mas objeto
 
Que se oferece como signo dos outros
 
Objetos estáticos, tarifados.
 
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
 
De ser não eu, mas artigo industrial,
 
Peço que meu nome retifiquem.
 
Já não me convém o título de homem.
 
Meu nome novo é Coisa.
 
Eu sou a Coisa, coisamente.
Carlos Drummond de Andrade

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