segunda-feira, 6 de maio de 2013

"Música erudita não é mais exclusividade das elites."


João Maurício Galindo
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Ao longo da carreira, João Maurício Galindo vem se dedicando a apresentar a “música clássica sem casaca”. É esse o slogan de seu programa Encontro com o Maestro, na Rádio Cultura FM. A Orquestra Jazz Sinfônica, da qual é regente e diretor artístico desde 2003, também desarma paradigmas ao executar obras de compositores populares. À frente da Orquestra Jovem de São Paulo há 20 anos, ele afirma com propriedade que os novatos não vêm mais da elite – uma demonstração do espaço que a música de concerto tem a conquistar na sociedade. Em tempos de cultura massificada, o maestro aponta para “a música que se contempla” como forma de enriquecer a vida: “A música mais industrializada tem um efeito que passa, como uma dose de uísque”. Antes de falar com o Almanaque, Galindo regeu, interpretou e fez piada numa apresentação do projeto Aprendiz de Maestro, do qual é diretor artístico. As 1.400 crianças de escolas públicas na plateia não tiraram os olhos do palco. “Meu interesse não é só difundir a música erudita, mas principalmente fazer da música um acontecimento, uma experiência enriquecedora. E deliciosa.”

A música erudita faz parte de uma cultura elitista?
Historicamente, é uma coisa das elites. Porém, já deixou de ser exclusividade delas. Ao menos em São Paulo, um movimento de difusão acontece há cerca de 30 anos. Quando eu tinha 20 anos e tocava na Orquestra Jovem do Estado de São Paulo, a maioria dos músicos era filha de estrangeiros. Os executivos  vinham trabalhar no Brasil e colocavam os filhos para estudar música, seguindo a tradição. Mais tarde virei maestro dessa orquestra e, há 20 anos trabalhando com os jovens, noto que o perfil mudou completamente. Hoje ela é formada por típicos brasileiros, de classes mais baixas, muitos da periferia. Porque agora aprende-se música em igrejas de bairro, bandinhas de colégios e vários projetos sociais. Assim a música começou a chegar em todas as esferas. E a garotada se mostra animadíssima. Se antes os pais mandavam os filhos estudar, agora vejo os alunos trazendo os pais aos concertos. Noto até que, de forma geral, o público de apresentações públicas ou com preços populares é mais silencioso, mais ávido e mais curioso do que o público que paga caro pelo ingresso.

Mas ainda há um grande público a ser explorado no Brasil?
Certamente. Quando a escola de música estadual foi criada em São Paulo, 10 mil pessoas vieram tentar uma vaga. O Brasil é um país com poucas orquestras – dá pra contar nas duas mãos, e são sempre meio capengas no sentido financeiro. Poderiam ser criadas muitas mais, que haveria público. Mais de 10 anos atrás participei da formação de uma orquestra no Amazonas e ela existe até hoje. É um exemplo. Viajei muito pelo País com a Sinfônica do Estado de São Paulo e, aonde a gente vai, em qualquer praça em que paramos, junta gente para nos assistir. As orquestras, com seus diferentes instrumentos, fascinam as pessoas. É só fazer um repertório adequado ao perfil do público.

Você diria que o caminho é educar as plateias?
Isso. Treinar o ouvido não é pejorativo. Não dá para convencer um jovem a começar a ler com uma obra como Ulisses, de James Joyce, que nem meu professor de literatura conseguiu terminar. O que afasta as pessoas da música orquestral são as obras realmente muito difíceis, compostas para um público já muito educado. Um bom maestro sabe fazer da apresentação um show. Falar com a plateia, mostrar os instrumentos, mesclar músicas alegres com outras bem melódicas. A fórmula do concerto sinfônico com obras fáceis de ouvir é o melhor jeito de conquistar novos públicos.

Quais são os entraves para se executar amplamente esse tipo de apresentação pelo País?
A questão financeira, para começar. Orquestra é uma coisa cara. Em lugar nenhum do mundo dá ou deu lucro. No começo, a música erudita era bancada pelos aristocratas ou pela Igreja. Com o surgimento da burguesia, a orquestra passou a ser bancada pelos grandes empresários, que tinham praticamente a obrigação de investir em causas filantrópicas ou culturais. No Brasil essa cultura é pequena. Para complicar, a partir do século 20, a indústria da cultura de massa investiu pesado em músicas populares feitas em série, muitas vezes nem dignas do nome “cultura popular”. Isso dominou o cenário e é difícil convencer os patrocinadores a investir em algo diferente.

O efeito da cultura massificada é sentido em todo o mundo?
A Europa, por exemplo, sofre um momento de decadência. Orquestras estão fechando, se fundindo. A musica pop americana tem um efeito meio nocivo. Não sou contra, tem que ter música para todas as ocasiões, mas esse modo agressivo de conquistar mercado acaba muitas vezes criando preconceitos. Em lugares onde a música erudita sempre foi tradição também está sendo necessário fazer concertos infanto-pedagógicos, no molde do Aprendiz de Maestro, que eu dirijo, para formar novos públicos.

O seu programa de rádio Encontro com o Maestro, na Rádio Cultura, tem o slogan “música clássica sem casaca”. Porque a música clássica costuma ser tão mistificada?
No fim do século 19, a música de concerto em alguns países da Europa tinha virado uma coisa muito séria. Para ouvir uma ópera, as pessoas colocavam suas melhores roupas, iam solenemente ao teatro, sentavam em silêncio. Apagar a luz da plateia é uma inovação de 1880 – com luz de velas, não tinha como apagar. Aquilo virou um ritual sagrado. Esse ritual foi quebrado no começo do século 20 porque perdeu o sentido com a Segunda Guerra. Daí começou o choque: alguns querendo manter essa tradição até hoje, e outros apontando novos caminhos. No Brasil esse choque foi importado. Pessoas que estudaram na tradição europeia querem manter os rituais da música. Outros pensam que, num país tropical, não há necessidade de tanta formalidade.

Como você vê a questão?
Eu acredito que existe um ponto certo de formalidades para cada situação. Se de repente o público for bastante entendido, tudo bem manter o ritual, é bonito. Uma pessoa que nunca viu um concerto, porém, pode se sentir intimidada. Por outro lado, é bom estar numa bela sala, com colunas antigas, uma arquitetura bonita, e ver que os músicos estão arrumados para te receber.

Que importância a cultura da música erudita pode ter na vida das pessoas?
Não gosto de falar em música erudita, prefiro pensar em música de concerto, feita para ser contemplada. Eu defendo que se ouça Vivaldi e Beethoven, mas não é só isso. A ideia da música erudita é sentar, ouvir e viajar, uma oposição à música de dançar na festa, de distrair numa sala de espera ou de acalmar no avião, por exemplo. Antes dela, a música sempre teve um papel coadjuvante nas atividades da sociedade. Hoje em dia tanto faz se é uma sinfonia de Beethoven ou se é o João Gilberto com o violão. João Gilberto vai tocar no Japão, duas mil pessoas sentam e fazem o maior silêncio para ouvir bossa nova. Bossa nova também pode ser música de concerto. O meu interesse não é só difundir a música erudita, mas principalmente fazer da música um acontecimento, uma experiência enriquecedora – e deliciosa. Temos que aprender a ter o hábito de sentar para ouvir música, do mesmo modo que assistimos a um filme.

É possível que qualquer um se fascine com essa cultura?
A definição da palavra cultura é bonita. Cultura é o que você cultiva. Se você é um lavrador e planta uva para fazer vinho, tem que cultivar a vieira: cuidar da terra, matar os insetos, colher. A cada ano, faz tudo de novo, e o vinho vai ficando melhor. Gostar de música, de cinema, é isso. Você vai se aproximando daquele mundo e se aprofundando conforme seu gosto. O século 20 tem muito da cultura descartável: vou ver uma banda, fico pulando, depois vou embora. É gostoso, mas usamos a música mais industrializada para ter um efeito que passa, como uma dose de uísque, por exemplo. Queremos mostrar que as pessoas podem cultivar alguma coisa dentro delas. Quando isso foi inventado na Europa, infelizmente só atingia poucas pessoas. Aí, quando temos a chance de espalhar para mais gente, isso se perde em uma cultura muito massificada.

Música popular e música erudita são antagônicas na história do Brasil?
Quando vou reger na Europa, só levo música brasileira. Tanto obras dos eruditos quanto dos populares. Para o europeu, é tudo Brasil. Ele não separa. Ouve Dorival Caymmi como se fosse erudito. A gente aqui quer separar o que é erudito do que é popular. Entretanto, não se pode negar que houve uma época em que, se você tocasse berimbau ou andasse com um violão debaixo do braço, ia preso. Na primeira vez em que um compositor brasileiro compôs uma sinfonia colocando ritmos afros, os críticos caíram matando. Era um compositor abolicionista, Alberto Nepomuceno. Estava usando a música para provocar a sociedade – mais um exemplo da importância da música erudita. Os compositores eruditos, que colocamos num pedestal, sempre usaram a música popular em suas obras monumentais. Até Beethoven, que é um dos compositores mais austeros que já existiu, colocava a música popular alemã no meio das sinfonias, apesar de hoje em dia não identificarmos mais isso. Podemos usar a matéria-prima da música popular para criar uma sinfonia moderna, como fazemos sempre na Jazz Sinfônica. Costumo dizer que a música popular é uma pedra preciosa, natural. A música erudita é a joia – mais trabalhada, mas não obrigatoriamente mais bonita. Por isso gosto de chamar o oposto de música erudita de música intuitiva.

O preconceito com a música popular dificultou a formação de uma música erudita com a nossa cara?
No Brasil do século 19, os compositores eruditos copiavam os compositores europeus. As famílias ricas, os barões do café, faziam saraus ao piano cantando em italiano, francês, alemão. As canções populares, em português, eram chamadas de “música de preto”. Alberto Nepomuceno, que inseriu o reco-reco na sinfonia, também foi o primeiro a propor música de salão em português. Criou uma campanha com a frase “Não tem pátria o povo que não canta em sua língua”.  Como diretor do Instituto Nacional de Música, foi muito combatido. Ele que abriu as portas para Villa-Lobos. Infelizmente, é um repertório admirável que pouca gente conhece. Tanto o de Nepomuceno, quanto o de Villa-Lobos, tão falado.

Como é o reconhecimento da música erudita brasileira no exterior?
Muitas vezes, ao fim dos concertos que rejo na Europa, músicos me agradecem por ter a oportunidade de tocar as músicas brasileiras que coloco no programa. Na Itália dizem que estão cansados de tocar Verdi, Puccini… Sabem que é lindo, mas é bom tocar algo novo, e de qualidade também. O repertório de Villa-Lobos é comum fora do Brasil. Encontra-se também Egberto Gismonti, Camargo Guarnieri, que teve projeção nos Estados Unidos. Teve até um concurso por lá, nos anos 1940, em que Guarnieri ficou em primeiro lugar e o Villa-Lobos em segundo – todos inscritos com pseudônimos.

O que diria que o Brasil acrescentou à música erudita mundial?
A música erudita europeia levou mais de mil anos para se formar. Começou na Grécia antiga, em um longo processo. Durante esse processo, vários elementos musicais foram excluídos da cultura europeia. Houve uma época em que a Península Ibérica tentava expulsar os árabes invasores, do século 7 ao 16. Certos elementos da música árabe eram recusados – um intervalo musical chamado “segundo aumentado”, por exemplo. Ritmos considerados sensuais também foram deixados de lado, já que a cultura ficava presa nos mosteiros. Enquanto isso, outros povos, como os judeus e os árabes, continuaram com sua música e, na Inquisição, espalharam-se por territórios fora da Europa, como o Brasil. Daí surgiu o rock, a salsa, o choro, o frevo. É como se a música intuitiva das Américas estivesse agora devolvendo para a música erudita europeia o que eles haviam descartado antes.
Escrito por Natália Pesciotta  

Fonte: http://www.almanaquebrasil.com.br/personalidades-musica/11492-joao-mauricio-galindo.html

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