sábado, 19 de março de 2011

Rubem Braga

AQUELA MULHER

O médico me levou até o elevador.
Quando cheguei à rua
Sabia que já não estava condenado a morrer.
Mas as horas de perigo, de certeza da morte,
De preparação para a morte,
As horas da morte ainda batiam dentro de mim.
Nessas horas a vida recuara ante meus olhos,
Cheia
De suas fascinações, tristezas e ternuras,
Estava orgulhoso de mim mesmo.
De meu pensamento viril diante da morte,
Da força de meu ódio aos inimigos que eu pensara em matar antes de morrer.
Do amor, do grande e comovido amor
Com que eu me despedia em silência de vós, almas queridas,
Almas queridas a que jamais servi bem.
Ia pela rua, mas ainda ia a meu lado
A sombra sem terror mas inapelável
Da morte.
Foi então que passou a desconhecida mulher
Abençoada eternamente seja essa mulher!
Uma alta, bela, desconhecida mulher
Que andava com seu andar de desconhecida mansa
Seus finos cabelos negros brilhavam ao sol
E seus olhos eram claros como a vida que renascia.
No seu corpo havia a doce dignidade essencial
Que é a marca suprema da beleza na mulher.
Eu a fitei, eu detive os seus olhos com os meus,
Foi apenas um segundo.
Ela não desviou os seus,
Apenas continuou na sua marcha mansa
Não sentiu nos meus olhos a aflição deslumbrada
A ansiosa descoberta, a impressão de milagre
Nos meus olhos ressucitados que saudavam
E abençoavam, abençoavam ardentemente sua natureza de mulher.
Eu estava tão sólido em face da morte,
De minha morte, de minha obscura morte,
Estava tão sólido, firme, bem plantado e certo
Perante a morte – e agora
Era como se a vida como alta onda desabasse
Sobre mim, e num instante
Senti toda a sua força furiosa, o desespero, a beleza,
A ânsia que não tem fim, a sede, a dolorosa
Exaltação que sempre foi a vida para mim,
A tonteira cruel, a coragem, a promessa
O que ela me dá, o que tomo, o que roubo,
O que espero, e tudo, tudo o que eternamente desespero.
Senti-me fraco, miserável, diante da vida,
À mercê da sua força inelutável, da atração
Cruel com que me chama todo dia.
Senti a sua exasperante incerteza,
Senti num instante toda a sua longa, longa,
Mortificante melancolia.
Fazia sol na rua.
Dois homens pararam me olhando. Eu olhava
Longe – com meu olhar ressuscitado
Que de longe, muito longe, ainda
Abençoava aquela mulher.
Rubem Braga
(São Paulo, 1941)

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