quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

A Igreja Católica quer ter um casal de santos escravocratas?

Aviso: baseio esse artigo, essencialmente, nas informações biográficas fornecidas pela própria arquidiocese do Rio de Janeiro sobre o casal Zélia e Jerônimo, mais novos candidatos a beato do país.
13 de maio de 1888: princesa Isabel assina a Lei Áurea. O casal Zélia Pedreira Abreu Magalhães (1857-1919) e Jerônimo de Castro Abreu Magalhães (1851-1909) acata a lei e permite que os seus escravos continuem a viver na fazenda.
20 de janeiro de 2014: a Arquidiocese do Rio de Janeiro fez saber ao mundo que pretende a beatificação de Zélia e Jerônimo. Como sabemos, a beatificação é o primeiro passo para a canonização. Ou seja, se o processo correr e ficarem provados milagres concedidos pela dupla, caminhamos para ter, um dia, um santo casal escravocrata brasileiro. Poderemos então chamar Zélia e Jerônimo de "santos padroeiros do sistema escravista".
Dom Orani Tempesta, recém-nomeado cardeal, arcebispo da Arquidiocese do Rio de Janeiro, lançou inclusive uma oração para que os dois cheguem lá: “Senhor, nosso Deus, que unis o homem e a mulher pelos laços do Matrimônio, Vos pedimos, por intercessão de vossos servos, Zélia e Jerônimo, que se santificaram na vida do amor matrimonial, acolhendo e educando seus filhos na verdadeira Fé, no amor a Deus e ao Próximo, a graça da proteção às nossas famílias. Rogamos que seguindo os seus exemplos possamos viver de acordo com o Vosso desejo, para o bem da Igreja e a santificação de nossa sociedade.”
A partir dessa oração, parece evidente que o objetivo principal da beatificação é a valorização do casamento religioso tradicional, ou seja, entre heterossexuais, como parte do combate ao avanço dos novos arranjos familiares que o Ocidente, sobretudo, vem vivendo. A hora é de valorização do casal, não mais o indivíduo, supostamente santo.
A Igreja de Dom Orani, assim, os avalia como bons pais. Entre outros motivos, por terem tido nove filhos conduzidos à vida religiosa. Mas não deixa de tocar em outro ponto, igualmente sensível: acha também que eles foram bons senhores de escravo. No perfil biográfico do casal distribuído pela arquidiocese, afirma: “Na fazenda [de propriedade do casal, Santa Fé] havia uma capela onde Zélia rezava inúmeras vezes ao dia. O casal jamais tratava os escravos, que viviam em liberdade e recebiam salário, como propriedade [grifo meu].” A contradição é evidente, e a saída é o recurso constrangido do verbo tratar: Zélia e Jerônimo podiam não tratar seus negros como escravos, mas jamais permitiram que esses homens “tratados como livres” fossem “de fato” livres.
Outro motivo para a beatificação do casal é que seus escravos “iniciavam seu dia de trabalho com uma oração guiada por ela e acompanhada por Jerônimo, no coreto do pátio da fazenda”. O texto da Arquidiocese acrescenta que “a preocupação de Zélia e Jerônimo com a vida espiritual desses homens, mulheres e crianças era tão grande que eles sempre participavam da Missa, das confissões e da catequese promovidas pelo casal, e Zélia, pessoalmente, encarregava-se da catequese e da assistência aos escravos e necessitados”.
Em Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre cita (bem pouco criticamente, é verdade) o viajante Henry Koster, em relação à conversão de escravos ao cristianismo: “Não se pergunta aos escravos se querem ou não ser batizados; a entrada deles no grêmio da Igreja Católica é considerada como questão de direito. Realmente eles são tidos menos por homens do que por animais ferozes até gozarem do privilégio de ir à missa e receber sacramentos”.
A atenção religiosa de Zélia e Jerônimo, assim, se aproxima desse processo descrito: parece, pela própria descrição da arquidiocese, que eles não tinham a opção de participar ou não dos rituais católicos.
Leia mais em:

Nenhum comentário:

Postar um comentário