domingo, 23 de março de 2014

Resenha do livro “A Formação das Almas”, de José Murilo de Carvalho

Por Paulo Altomare


Especialista em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
OS IMAGINÁRIOS DA REPÚBLICA BRASILEIRA
A título de apresentação, serve citar que o autor da obra sob exame – José Murilo de Carvalho – nasceu em 1939, em Andrelândia, no Sul do estado de Minas Gerais. Mestre e Doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Stanford, com pós-doutorado pela Universidade de Londres, é professor titular de História do Brasil no Departamento de História da UFRJ e também leciona na Escola de Guerra Naval. Construiu sólida carreira de docência, pesquisa e publicações dentro e fora do país. Com vários livros e mais de uma centena de artigos publicados, Murilo de Carvalho foi diversas vezes premiado, tendo sido eleito para a Academia Brasileira de Ciências – ABC -, em 2003, e para a Academia Brasileira de Letras – ABL -, em 2004. Na ABL, declarou que pretende melhorar o diálogo entre essas duas academias e a terceira de que faz parte, a universitária.
Passando do ator (palavra da moda em relações internacionais e que vem bem a calhar, dado o gosto do autor pelo vocabulário próprio das Artes Cênicas) ao objeto, A formação das almas: o imaginário da República no Brasil teve sua 1ª edição em 1990. Dessa edição, várias reedições vieram a público, sendo a de número 18, de setembro de 2008, a que serviu de base para o presente trabalho.
A quarta capa do volume em comento apresenta uma reprodução da obra “A República”, do artista plástico positivista Décio Villares. Abaixo da reprodução, um curto texto sem identificação autoral aponta para a habilidade de Murilo de Carvalho para extrair de símbolos (como bandeiras e hinos nacionais) e de expressões artísticas diversas (como monumentos em praças públicas, caricaturas e charges de jornais) as chaves de interpretação de mitos e símbolos de sistemas políticos.
Na posição oposta, na primeira capa, apresenta-se a reprodução de uma outra obra, ‘A Pátria’, de Pedro Bruno, outro artista plástico positivista, sinalizando para o conteúdo da obra que introduz, ao representar um grupo de mulheres cosendo a bandeira nacional, enquanto duas crianças estão em seu redor. As abas do livro também trazem aspectos relevantes do conteúdo do livro, ainda que, curiosamente, também se apresentem sem autoria.
As referidas abas definem os elementos básicos da obra, de modo direto: o cenário em que se dão os fatos analisados; os principais personagens envolvidos; e a trama central. Questões às quais se respondeu, também diretamente, com: a passagem do Império para a República; liberais, jacobinos e positivista; e disputa pela legitimação do regime republicano, respectivamente. Vale notar que o autor manteve o uso da metáfora teatral, já utilizada em obra anterior: Teatro de Sombras: a política imperial, parte de sua tese de doutoramento, publicada, inicialmente, em 1988, e, a partir de 1996, em conjunto com A construção da ordem: a elite política imperial.
Nas abas também se informa que não é a primeira vez que José Murilo se deteve sobre o momento de gênese da República. Cita que em Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi (Companhia das Letras, 1987), o autor se concentra na concepção e na prática da cidadania no Brasil e mostra como o povo esteve afastado do que se conveniou chamar “onda revolucionária” de 1896. A partir dessa constatação, Murilo de Carvalho propõe-se a responder à pergunta de como o novo regime se consolidou em Formação das almas: o imaginário da República no Brasil, a partir do mapeamento das correntes ideológicas que disputavam a definição da natureza do regime republicano.
Constituindo a trama das ideologias o eixo articulador do livro, José Murilo de Carvalho embarca na análise de elementos extradiscursivos das justificativas ideológicas republicanas e, “hermeneuta das formas”, passa a interpretar símbolos, imagens, alegorias e mitos da época, além de, por fim, avaliar de que maneira as concepções da República extravasaram o círculo restrito das elites e alcançaram a população.
O título da obra dá a pista: formar almas, por meio de arsenal de heróis, hinos, mitos e bandeiras que transbordaram no país, ao final do século XIX, na luta pela conquista do imaginário popular republicano. Não obstante, o autor parece concluir que, assim como a “República não foi”, tampouco, foram bem sucedidos os construtores da nova forma de governo, ao tentarem construir um imaginário próprio. Prova essa assertiva o farto material iconográfico posto sob análise – monumentos, caricaturas de jornais, obras de arte – que reflete as incoerências da República brasileira e a do próprio ícone, Tiradentes.
Ao longo do tempo, o mártir teve sua imagem, história de insurgente e atitude religiosa reclamadas por grupos de ideologias diferentes e até opostas, o que acentuou a ambigüidade do símbolo. O governo republicano tentou dele se apropriar; os governos militares recentes declararam-no patrono cívico da nação brasileira; o Estado Novo o exaltou; Walsht, positivista, pintou-o um militar de carreira; e até as esquerdas, que desde os jacobinos até os movimentos guerrilheiros da década de 1970 dele não abriram mão.
Apresentada uma visão panorâmica do conteúdo do livro, pode-se fazer uma apresentação de sua estrutura física. A 18ª reedição da obra em comento foi produzida em 168 pgs. Após a contracapa, encontram-se o índice, os agradecimentos, a introdução e os seis capítulos em que se divide o volume: 1 – Utopias republicanas; 2 – As proclamações da República; 3 – Tiradentes: um herói para a República; 4 – República-mulher: entre Maria e Marianne; 5 – Bandeira e hino: o peso da tradição; e 6 – Os positivistas e a manipulação do imaginário. Em seguida, vêm: a conclusão; as notas à introdução e a cada capítulo; as fontes (jornais e revistas; livros; e artigos, teses e folhetos); e o índice das ilustrações.
Já na introdução, Murilo de Carvalho delineia os assuntos de que tratará nos capítulos que lhe seguem. O autor: 1 –discutirá as ideologias que disputavam a definição da natureza do novo regime – o jacobinismo, o liberalismo e o positivismo; 2 – abordará o tema do mito da República e o estabelecimento de um mito de origem; 3 – tratará do mito do herói, também de longa tradição na história; 4 – desenvolverá o tema da aceitação popular da alegoria da República na figura da mulher, na França, e de sua rejeição, no Brasil, mediante a comparação por contraste, entre aspectos das duas sociedades e das duas repúblicas; 5 – discutirá os simbolismos da bandeira e do hino; e 6 – se dedicará aos positivistas ortodoxos, os mais articulados manipuladores de símbolos do novo regime, superando, na organização e na perseverança, os jacobinos.
O capítulo 1, “Utopias republicanas” (já publicado, anteriormente, em versão modificada sob o título “Entre a liberdade dos antigos e a dos modernos: a República no Brasil”, em Dados, Revista de Ciências Sociais), é dividido em alguns títulos, a saber: As duas liberdades; A herança imperial; A opção republicana; e A cidadania e a estadania. Neste capítulo, o autor discutirá como os modelos europeu e americano, principalmente francês e o dos Estados Unidos, foram interpretados e adaptados às circunstâncias locais pela elite política republicana.
O capítulo 2, “As proclamações da República”, abre-se com uma epígrafe de Tobias Barreto: “A gente fica a pensar se a história não será em grande parte um romance de historiadores” e foi dividido em quatro títulos: As proclamações; Deodoro: a República militar; Benjamin Constant: a República sociocrática; Quintino Bocaiúva: a República liberal. Trata da tentativa dos vencedores de 15 de novembro de construir uma versão oficial dos fatos destinada à história, a luta pelo estabelecimento de um mito de origem. Estavam em jogo a definição dos papéis dos vários atores, os títulos de propriedade que cada um julgava ter sobre o novo regime e a própria natureza do regime. O autor ressalta que o advento da República não pode ser reduzido à questão militar e à insurreição das unidades militares aquarteladas em São Cristóvão. Consta, em nota de pé de página, que versão resumida deste capítulo já fora publicada na revista “Ciência hoje”, nº59 (novembro/1989).
O capítulo 3, o último dos três publicados anteriormente (em versão resumida, no Jornal do Brasil, 2/12/1989 – a efeméride justifica), sem subtítulos, o autor debruça-se sobre a dificuldade encontrada para se construir um herói para o novo regime. Segundo o autor, herói que se preze deve, de alguma maneira, ter a cara do povo que representa; tem de responder a alguma necessidade ou aspiração do conjunto da nação, refletir algum tipo de caráter ou de atitude que corresponda a um modelo coletivamente valorizado.
No caso brasileiro, foi grande o esforço de transformação dos principais participantes do 15 de novembro em heróis do novo regime. Deodoro era o candidato mais óbvio ao papel de herói republicano, mas seu republicanismo era incerto; Benjamin Constant apresentava um republicanismo inatacável, mas não era um líder; candidato mais sério que Benjamin era Floriano Peixoto, que adquiriu grande dimensão após os episódios das Revoltas da Armada e Federalista, tendo inspirado o jacobinismo. Constava contra ele, entretanto, a divisão que criava entre os militares (Exército contra marinha) e entre os civis (jacobinos e liberais). Assim, o esforço de promoção desses candidatos a heróis resultou em quase nada. A “passeata militar” de 15 de novembro não fornecia substância suficiente para a gênese de mitos.
Diante dessas dificuldades, quem aos poucos se revelou capaz de atender às exigências da mitificação foi Tiradentes, não obstante a intensa batalha historiográfica que, ainda hoje, se trava em torno da figura do Mártir da Inconfidência. Além disso, este teria enfrentado e vencido Frei Caneca como um concorrente de peso – herói de duas revoltas, uma pela independência, outra contra o absolutismo, além de também ter morrido como mártir. Na luta pela conquista de ‘corações e mentes’ (para citar o documentário político de Peter Davis, de 1971, a respeito do processo de transformação da opinião pública norte-americana em relação à Guerra do Vietnã), a candidatura de Tiradentes a herói da República teria se beneficiado de alguns fatores.
O geográfico seria um deles: Tiradentes seria o herói de uma área que, a partir da metade do séc. XIX, já podia ser considerada o centro político do país – Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, as três capitanias que ele, inicialmente, buscou tornar independentes. Frei Caneca seria o herói de uma região – o Nordeste – em plena decadência econômica e política, além de a Confederação do Equador comportar certo aspecto separatista.
Teria havido outro importante fator na preferência pelo herói das Minas Gerais: a coragem que demonstrou viria ao final do fervor religioso, ao contrário daquela de Caneca, que viria ao final do fervor cívico. Tiradentes assumira a postura de mártir, identificado com Cristo; Caneca, a de herói desafiador, quase arrogante. A conjuração de Tiradentes não passou à ação real; Tiradentes não derramou sangue, nem foi violento contra outras pessoas: ele foi o “mártir ideal e imaculado na brancura de sua túnica de condenado”. De modo diverso, ocorreram os levantes de 1917 e o de 1924, em Pernambuco, protagonizados pelo Frei. Tudo isso falava alto à alma do homem do povo.
O capítulo 4, “República-mulher: entre Maria e Marianne”, também sem subtítulos, explicita um dos elementos mais marcantes do imaginário republicano francês, a alegoria feminina. Da Primeira a Terceira República, a figura feminina, inspirada na Roma clássica, dominaria a simbologia cívica francesa, representando tanto a liberdade, quanto a revolução e a república. A popularização teria vindo com a figura de Marianne, nome popular de mulher. Como reação, o governo que precedeu a Terceira República teria passado a incentivar o culto da Virgem Maria.
No Brasil, as dificuldades para o uso da alegoria feminina eram praticamente insolúveis. Ela não encontrava suporte em nenhuma das duas partes: o significado da República real estava muito distante daquele imaginado por seus executores; e o significante, o qual não comportava a mulher cívica, nem na realidade, nem em sua representação. Consequentemente, a República considerada falsa foi aproximada da imagem de mulher tida como corrompida, a prostituta.
No capítulo 5, “Bandeira e hino: o peso da tradição”, trava-se a batalha acerca da simbologia republicana relativamente à bandeira e ao hino: de adoção e uso obrigatórios, esses dois símbolos tinham de ser estabelecidos por legislação, em data certa. Dividido em dois subtítulos, “A bandeira ‘marca cometa’” e “O ‘ta-ra-ta-ta-tchin’: vitória do povo”, o autor afirma que, quanto à disputa referente à bandeira, a vitória coube à facção dos positivistas, mas ressalta que essa vitória se deveu ao fato de que o novo símbolo incorporou elementos da tradição imperial. No caso do hino, então, a vitória da tradição teria sido total.
O capítulo 6, “Os positivistas e a manipulação do imaginário”, foi divido em três subtítulos: ‘O imaginário comtista’; ‘A tática bolchevista dos ortodoxos’ (seção que havia tido algumas idéias já publicadas, na Revista do Brasil); e ‘Manipuladores de símbolos’. Neste, o autor se dedica exclusivamente aos positivistas ortodoxos, pois teriam se envolvido em todas as batalhas simbólicas discutidas no livro: as do mito de origem; a do herói; a da alegoria feminina; e a da bandeira (no caso dos debates sobre o hino, eles teriam se omitido por acederem à solução encontrada. Afirma, peremptoriamente, que foi o grupo mais ativo e beligerante, para que a República se tornasse um regime não só aceito, mas também amado pela população: lutaram com dedicação apostólica; para outros, como fanáticos.
Por fim, na conclusão, Carvalho afirma que a corrente vitoriosa não obteve êxito em criar um imaginário popular republicano, honrosas exceções feitas, paradoxalmente, àqueles aspectos mantidos da tradição imperial ou dos valores religiosos. O esforço empregado não fora suficiente para envolver a população, alijada do processo de implantação do novo regime.
Por todo o exposto, verifica-se que José Murilo de Carvalho, empreendeu, com sucesso, tarefa inédita, ao interpretar símbolos incorporados pela nova forma de governo – a República -, no que tange ao sentimento demonstrado pelas diversas formas de expressão artística. No Brasil, os ícones oficiais adotados, inspirados naqueles franceses das revoluções de 1789,1830, 1848 e 1871, que , por sua vez, foram inspirados nos da Roma Clássica, não repercutiram no imaginário nacional como o fizeram em outras terras e tempos. O autor levanta os debates ideológico e historiográfico acerca do tema e destrincha suas implicações e suas remanescências, as quais perduram no modelo liberal-democrático vigente, em enclaves jacobinos e rasgos positivistas.

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